O livro “Harmonia: Fundamentos de arranjo e improvisação” de Paulo Tiné não é para principiantes em música e o próprio autor adverte o leitor em sua apresentação: “Ele é fruto de muitos anos de docência sobre o assunto no ensino superior”.
Toronto – CA., 01 de Dezembro de 2021.
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O livro exige, portanto, um embasamento teórico e pré-requisitos do estudante ou do pesquisador. Exige um passo além, algo mais que o simples conhecimento da teoria básica da música. Seu conteúdo está voltado para quem pretende estudar mais seriamente a disciplina harmonia (incluindo improvisação e arranjo) no âmbito da música de Jazz e da música popular.
Refiro-me aqui ao reconhecimento de intervalos, inversões, escalas diatônicas maiores e menores, o conceito elementar de tetracordes, algo sobre a nomenclatura básica e geral dos modos gregorianos, as escalas pentatônicas e seus modos, uma ideia do que vem a ser improvisação, ter, pelo menos, ouvido falar em escalas simétricas e, se possível, algo também sobre os “modos de transposição limitada” (os dois primeiros modos simétricos são abordados no livro) do compositor francês Olivier Messian. Claro, tudo isto está contido no livro e com propostas práticas.
Nele estão contextualizadas questões sobre “tríades não diatônicas”, disposição das vozes a partir da sobreposição de 5ªs justas (Spreads ou como se diz “posição espalhada” do acorde), acordes por 4ªs (quartais), funções e nomenclaturas que remetem também à música popular. Para quem tem formação em harmonia clássica, verá que teorias do Jazz construídas nos últimos 50 anos pelos jazzistas e músicos populares topam, lidam, por exemplo, com nomenclaturas dos acordes maiores e/ou menores com 6ª acrescentada (meio-diminuto) – abrindo passagem em uma barreira “teórica” e sistêmica advinda da sobreposição por 3ªs pela harmonia clássica.

Para os jazzistas e para o livro Harmonia de P. Tiné essa prática, esse conceito, já é lugar-comum: o primeiro exemplo já inicia com um acorde de Dó maior com 7ª Maior, Sexta Maior e Nona Maior. Novas sonoridades estão, portanto, abertas à especulação do músico investigativo e curioso e se revelam como resultado da profusão de relações entre escala-modo-acorde, um dos núcleos de abordagem do livro.
Assim, o músico ou o estudioso que queira reciclar conhecimentos, ampliar horizontes sonoros e se dedicar ao estudo do livro Harmonia aqui resenhado, mas que está, de uma ou de outra forma deslocado do contexto de um curso regular de harmonia (particularmente do Jazz), necessitará sim, buscar e preencher, com o livro como um guia, alguns pré-requisitos teóricos importantes e estar, obviamente, disposto ao estudo. Claro está: quem estudou harmonia clássica, precisará, caso não o tenha feito, reciclar sua práxis e interpretação musical, agregando novas ferramentas de percepção e análise a partir do legado harmônico sonoro e melódico oferecido pelo Jazz moderno e a música popular das últimas décadas.
Senão, como capturar por meio da percepção o sentido musical de harmonias tão repletas de ‘ex-tensões’? Por isso o livro trata, de chofre e obrigatoriamente, do antigo cuidado com as dissonâncias – as “notas evitadas!” – e suas diversas formas de tratamento. E agora, em especial, o que não é novo para o sistema tonal, vamos lidar com a “áspera” 9ª menor, uma nova balizadora do conceito de dissonância no Jazz: – “Era só um jogo!”… “Fique tranquilo, que [a dissonância, a tensão] passa logo!” (Schönberg, Armonia, p.50-1). O livro explora isso exaustivamente, porque a estética do Jazz e da música popular assim exige.
Além do mais, o livro traz abordagens sobre “velhos” tijolos da construção tonal, dominantes e subdominantes secundárias e suas extensões, modulações, empréstimos modais, o acorde napolitano, o conceito de SubV, SubII e o conceito criado por Arnold Schönberg: a monotonalidade. Nele surgem ideias e estruturas cadenciais observadas com análises e propostas práticas para exercícios de harmonização de melodias tonais e modais, elaboração de encadeamentos com tétrades e a proposição de cadências, etc. Tudo numa ordem predefinida no Sumário do livro, que progride até o fechamento do ciclo de modulações às tonalidades mais distantes chegando a uma recapitulação conceitualmente renovadora do universo modal.
Há, obviamente, farto material de referência sobre todos estes assuntos em outros tratados clássicos de harmonia e que invadiram o século XX, inclusive advindos da mais recente história do Jazz. Tratadistas clássicos como Walter Piston, A. Schönberg, H. Shenker, Max Reger, J. Zamacois, V. Persichetti se põem aqui lado a lado com teóricos do Jazz como Mark Levine, Sammy Nestico, o compositor e pedagogo canadense Barry Harris, a compositora jazzista norte-americana Maria Schneider, George Russell com seu essencial conceito do Lídio Cromático, entre outros. E, o que é bom, é que o Harmonia em questão abraça, abarca em toda sua extensão, além das emblemáticas sonoridades trazidas pelo Jazz “equidistante” de John Coltrane, do Modal Jazz de Miles Davis e Bill Evans, entre outros, também harmonizações da rica música popular e folclórica do Brasil e como não poderia deixar por menos, abre para as sonoridades musicais de Tom Jobim à Milton Nascimento. São composições surgidas a partir de meados do século XX, a partir do advento da Bossa Nova e dos movimentos sócio-musicais e artísticos subsequentes que resistiram no Brasil (e no mundo) a partir dos anos 1960-70.
Além do rico material colecionado nas pesquisas e análises, o Harmonia também oferece ao estudante leitor algo sobre conceitos jazzísticos fundamentais (técnicas) para a compreensão da disposição de vozes como o 4 way Close, Drops, Voice leading, o conceito de acordes em blocos e procedimentos harmônicos estruturais como o Coltrane Changes, Vamps, turnaround, cadências, Tríades na Camada Superior (TCS), etc. Todos estes conceitos estão presentes com proposições de exercícios e são partes estruturantes do livro.
Infelizmente, por motivos de direitos autorais que certamente escapam à vontade do autor, não constam no livro as melodias (temas) sobre os exemplos citados e as propostas harmônicas dadas. Mesmo assim, diante da carência do importante elemento melódico para o estudo da harmonia, ele contorna o problema (e aqui entra a Internet como valiosa companheira multimídia) indo muito além de outros tratados nacionais clássicos como o livro “Harmonia Funcional” de Zula de Oliveira – e outros mais, citados na Bibliografia.
Em outras palavras, o Harmonia de Paulo Tiné torna-se necessário à formação, em língua portuguesa, mais estruturada de estudantes, músicos e musicistas em nosso país, contribuindo na formação de profissionais que atuarão direta ou indiretamente com música popular de qualidade. Acredito que, em breve, tais técnicas e nomenclaturas se integrarão gradativamente à disciplina Harmonia no contexto acadêmico universitário.
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